Mesmo caída. Mesmo arrancada à bicicleta. Os pequenos sinos ainda soavam. Dobravam de acordo com o vento. Treze anos. Aros 12 de plástico branco. Rodinhas para auxiliar o equilíbrio. Guidom cromado em tons de rosa que se esvaem pelo quadro abaixo, imponentes e meticulosos. O mais importante, uma gaiolinha na frente. Carregava sua boneca, causa mortis, foi o que se concluiu após ampla investigação.
O crime horrorizou a cidade. Tanto o SUPER quanto o AQUI deram manchete:
MENINA DE 13 ANOS BRUTALMENTE ASSASSINADA
Belo Horizonte, 20 de julho, a barbárie se instaura. Nem mesmo nossas crianças e suas bochechas róseas, os velhos e suas dentaduras malacafentas, os intelectuais e suas mesinhas de escritório, os autônomos e suas bujigangas, os viados e o que é seu por direito. Exceto os mortos, todos, qualquer um, mesmo os filhos de Deus, do Diabo, mesmo Deus e o Diabo numa mesma canoa, ninguém, todos vivemos em meio à barbárie.
O pai [foto à esquerda] chora suas últimas lágrimas verdadeiras. Uma multidão deslocou-se ontem a tarde ao cemitério para demonstrar sua solidariedade.
“Estamos Vivos”
Era o que exibiam as faixas de protesto no centro da capital mineira. Menina de treze anos encontrada morta ao lado de sua boneca. Covardia. O inquérito policial, ainda em processo, sugere assassinato brutal. O assassino ainda não foi encontrado. A cidade está em alerta. Quem será a próxima vítima? (pág. 16)
Inconformado com a tragédia o pai trocava sua própria vida, todo seu dinheiro e o que mais fosse necessário, inclusive seu amor, inclusive sua honra, pela oportunidade de vingar-se. De nada adiantava, porque o crime, que mais parecia um acidente qualquer, carecia de explicação racional, legitima, de provas cabais, de testemunhas. Enfim, carecia-lhe uma causa, e crime sem causa é um crime nu.
Apenas a boneca, que a despeito de ter presenciado o crime, planejado e executado, não se pronunciou sobre o caso. Insensível aos apelos do pai, ao choro incontido e histérico. Permaneceu em silêncio até o último momento, quando tiveram a brilhante idéia de enterrá-la junto à filha, afinal amavam-se. O pai enterrar-se-ia também, lado a lado, vivo que estivesse, foda-se, se não fosse o despropósito da proposta. Ele ficaria aqui, entre nós, ao encalço do criminoso.
Quem acreditaria na hipótese de suicídio? Nem você. Nem eles. Se eu não fosse imparcial, tampouco acreditaria. E seria impossível, uma vez que a vítima se arrastara ainda por alguns metros, em direção à boneca, antes de desfalecer. O corpo se enrijecera de tal forma que a ponta do indicador apontava para a boneca. Boneca sem nome. Vamos chamá-la A.
A menina apontava para a boneca quando morreu. O braço enrigecera. Ainda coube num caixão de adulto, já que o pai não autorizou os legistas a quebrarem alguns ossos, procedimento usual nesses casos.
Ciúme, embora nada se possa dizer de inteligível, claro e significativo quanto a uma explicação. A. tinha ciúme. Crime passional. Ciúme por não ter mãe, nome de mãe. A. era sempre filha, filha, filha. Não tinha mãe, porém, porque a menina não dividia a sua por nada nesse mundo. Filha da puta egoísta.
A. sequer tinha um nome, a menina sequer lembrava-se que no mundo de hoje é preciso ter um nome. Mais que roupas, mais que engatinhar, mais que mentir. Antes de tudo. Quem aí não tem um nome? Que coisa ou tipo de coisa não tem um nome? Tudo tem nome, inclusive tudo. E quem não concorda, que ouse dar um exemplo.
Quando queria brincar, a menina apontava seu dedo, como quem chama, como quem manda, como mãe. Mas a menina não era a mãe da boneca - isso seria absurdo. A menina era filha e apontava o indicador para a boneca como quem insulta, como quem xinga, como quem quer mal.
Tudo ciúme. Mesmo caída.
2 comentários:
Modo cruel de ser notícia. Coitada da boneca...
quero o nome desse lugar no pescoço que fica entre as saboneteiras.
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