31 agosto 2005

Trad.: Kafka, Ein Traum (Ein Landarzt)


Um Sonho

Josef. K. sonhou:

Era um lindo dia e K. desejava passear. Sequer dera dois passos e já estava no cemitério. Havia ali caminhos de embocadura bastante, artificial e pouco prática, embora ele enveredasse por uma tal viela como se flutuasse sobre a rebentação d'água de modos inquebrantáveis, estático e suspenso no ar. Ao se distanciar, ele avistou um túmulo recém-escavado ao lado do qual pretendia repousar. Esse túmulo exercia sobre ele quase uma atração e ele acreditou não poder alcançá-lo com a ligeireza que convinha. Por momentos não enxergava o túmulo, obstruído que ficava pelas bandeiras, cujos tecidos contorciam-se e com bastante força um ao outro golpeavam-se; não se viam os porta-bandeiras, entretanto era como se lá reinasse intenso júbilo.

Enquanto ainda vislumbrava a distância que percorrera, viu subitamente um túmulo idêntico próximo de seu rumo, aliás já detrás de si. Depressa ele saltou na grama. Aí o caminho sob o pé palpitante seguia sossegado, ele cambaleou e postou-se de joelhos exatamente frente ao túmulo. Dois homens achavam-se atrás da sepultura segurando entre si uma lápide no ar; nem bem K. dera as caras, eles lançaram ao chão a pedra, que se firmou como cimento. Imediatamente de um arbusto despontou um terceiro homem, que K. constatou ser um artista. Ele vestia apenas calças e uma camisa em trapos entreaberta; sobre a cabeça levava um gorro aveludado, na mão, um lápis comum com o qual aproximava-se tracejando figuras no ar.

Com esse lápis ele iniciou então o seu trabalho sobre a lápide; esta era muito alta, de modo que não necessitava corcovar-se, conquanto se precavesse, posto que o túmulo no qual ele não queria pisar separava-o da lápide. Por conseguinte ergueu-se na ponta dos pés e apoiou-se com a mão esquerda na superfície da lápide. Lograra, por conta do manejo prodigioso, portando o lápis comum, bordar letras de ouro; ele escreveu: "Aqui jaz -". Cada letra surgia clara e distinta, talhada rigorosamente, toda em ouro. Após escrever duas palavras voltou-se para K.; K. que muito ansiava o prosseguimento da inscrição, não se importou com o homem, fitando, antes, apenas a lápide. De fato, o homem pôs-se novamente a escrever; em vão, qualquer estorvo o impedia, abandonou o lápis e concentrou-se outra vez em K. Agora K. também visava o artista, minuciando-o, já que este encontrava-se bastante constrangido, sem que K. soubesse dizer ao certo o motivo. Toda sua vivacidade desaparecera. Também K. constrangera-se com isso; entreolharam-se desamparados; tecido um inexorável mal-entendido que nenhum deles podia desfazer. Fora de hora começou a badalar um pequeno sino da capela sepulcral, ao passo que o artista agitou a mão ao alto e ele cessou. Pouco depois recomeçou, desta feita bem baixo, contudo, sem qualquer solicitação particular, interrompeu-se abruptamente; era como se quisesse apenas pôr seu som à prova. K. desesperava sobre a condição do artista, começou a chorar e soluçar demoroso na palma das mãos. O artista esperou até que K. se acalmasse e então deliberou, já que não encontrava outra alternativa, prosseguir a escrita. O primeiro pequeno traço que fez foi, para K., uma redenção, embora o artista certamente só o apresentasse com pujante relutância; a escrita já não era mais tão bonita, sobretudo parecia faltar-lhe ouro, o traço estilizava-se pálido e inseguro, tornando a letra desproporcional. Era um J, que já rompia quando em fúria o artista bateu com o pé no túmulo, de modo que a terra em volta pairasse no alto. Finalmente K. o compreendeu; não havia mais tempo para pedir-lhe desculpas; com todos os dedos cavou a terra que quase não oferecia resistência; tudo parecia preparado; apenas para manter as aparências erigiu-se uma fina camada de terra; logo abaixo abria-se uma grande vala com paredes íngrimes, na qual K., através de um movimento brando, pôs-se à pique de bruços. Enquanto, porém, ele era colhido pela profundeza impenetrável, a cabeça erigia-se ainda sobre a nuca, e lá em cima seu nome, com potentes ornatos, estourava sobre a lápide.

Encantado com essa visão, ele despertou.

Um comentário:

Anônimo disse...
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