Cândida era Absoluta, mas nunca não era Cândida. Capitu era Capitu. Olhos de ressaca. Cândida e absoluta. Acorda com o sol que amanhece. O ônibus em lotação máxima (42 sentados e 35 de pé). As janelas são concorridíssimas. Os homens sentados não são gentis, não se dispõem a carregar a bolsa das mulheres de pé. As mulheres desconfiam de cada homem que se dispõe a carregar sua bolsa. Dissimulam. Ambi- -Dui. Sobe um, dois degraus. Os olhos grudam como cola Cascolar. Desgrudam. Boca seca, não cospe. O esforço da respiração, a redenção, o aroma ressentido de éter. Cheiro azedo de velho. Os bancos na parte dianteira do ônibus se reservam a idosos, idosos, idosos, gestantes e deficientes. Como há gente no mundo que não morre? Zaggalo, o velho lobo, Villy Gonzer, o mais completo, Mikhail Gorbachev, o ex-comuna, Sandra Abdo* Boris Casoy, e, isto é uma vergonha, até o Niemayer, Silvio Santos, Ferreira Gullar e os acadêmicos imortais. Sancho Pança aconselhava estar vivo para se morrer. A morte contradiz. O cheiro de éter contradiz. As pálpebras soltas se grudam como quem não quer. Desquer. Quereres são coisa de quem passa a roleta. Há tantos velhos e velhos e velhos que Cândida não pode. Se segura onde dá. Dá-se ao que vier, como quem se dá ao carrasco. Há uma grávida. Carrega algo que lhe sobra. Dois. Um inválido no canto, algo lhe falta. Meio. Os outros esquecem-se de ser velhos e continuam velhos. Zero. Não sabem se são ou não.
Há vida em olhos de ressaca. Depois, o tempo pára.
Sonhava o mesmo quando criança. Sempre. E se abrisse os olhos as mesmas imagens se projetariam no teto com um filme de Bergman. Quis esquecê-lo. Nunca. Ficou-lhe o segredo. Dizem que o segredo é o legado do homem à humanidade. Cândida não teve filhos.
Sonhava. Havia uma moça e um gênio da lâmpada. Três pedidos. Ela quis fosse linda. Voalá! E nada mais era belo, nem bonecas nem plantas nem cadáveres nem o céu. Sob ao menos um ponto de vista, todas as outras pessoas enfeiaram. Restou ela, bela. Não satisfeita, quis fosse amor. Amar, verbo pronominal. Indecisa, ninguém não a pode amar. Quis mais 3 desejos. Ambiciosa, quis riqueza. Imediatamente. Detia direitos do céu à terra, e sobre o que há acima e abaixo. Quis fosse imortal. Ordenou, ao passo que o deus, num piscar de olhos, exterminou a pessoa. Uma a uma. Como se o acaso fosse questão definida, deixando-a só, consigo e mais ninguém. Matou-se a si mesmo, sem cometer suicídio. Não pode. Ela lhe ordena, troca todos seus desejos por uma morte digna, de bala. Ele não pode. Tem lá seus motivos. Quando um suicida não alcança sua ambição maior, quando de alguma forma seus planos correm esgoto abaixo, ele não se sente como se tivesse ganho outra oportunidade, salvo. Deseja afogar-se no mesmo esgoto de seus planos. Antes, imagina um tiro esfacelando o coração, sente uma culpa adjetiva e quase sem objeto, como se algum vício anônimo lhe tomasse o corpo. Então ele prefere chorar um choro esquisito, de outro.
Acorda. São olhos e escuridão. Como se nunca tivesse sonhado, abri-los é fechá-los. Escuridão.
O gosto acre de lágrima. O gosto acre de éter. O gosto acre de alcool.
Após alguns momentos um homem alcoolizado, inchado e barrigudo escancara a porta, tira o cinto, baixa as calças e paga adiantado com notas velhas e amafalhadas de R$ 5,00 (cinco reais).
Embebeda-se para dormir. Acorda pontualmente em sua cama suja, límpida e Cândida, absoluta.
Com os olhos de sempre. De nunca.
2 comentários:
* Infelizmente a Sra. Dra. Sandra Abdo, excelentissima pessoa, nem tão boa professora, faleceu na semana que se passou.
Meus pêsames quanto à Excelentíssima pessoa.
Quanto ao texto, tá cada dia melhor. Não há palavras que o diga.
Muitos beijos.
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