06 julho 2006

O cão andaluz (imagem precauccionista)


Imaginem agora um cão. Um cão amarrado num carro. A corda que os une não é maior que o campo de visão do animal nem tão pequena que qualquer freada o faça esborrachar o focinho no pára-choque traseiro do veículo. Se o carro acelerar, o cão deve acompanhá-lo para que não se enforque. O sábio estóico acrescentaria ainda que não importa a ação do animal, ele sempre acompanhará o carro, mesmo morto, mesmo estrangulado. A liberdade consistiria em agir deliberadamente e de acordo com a natureza. Há ordem. Há virtude em seguir a ordem. Mas deve haver uma e somente uma linguagem capaz de descrever o mundo. O carro não pode voar, deve ter quatro rodas, um motor. A corda não pode arrebentar. Há sobretudo determinismo.

Imaginem agora um outro cão. Um outro cão atado ao carro da mesma maneira. Vamos chamá-lo cão precaucionista. Vira-lata. O menor esforço para o vira-lata é a recompensa. Debater-se, esperniar, agitar-se ou resistir de nada adianta. Pelo contrário. Como o cão estóico, ou ele se deixa levar ou anda conforme a velocidade do carro. Contudo, nosso cão vira-lata quer ser livre. Liberdade para ele não é determinada, não é tédio. Seguir o mesmo carro, as mesmas leis, deliberar um mesmo raciocínio, correr de um mesmo modo, tudo isso soa entediante para o vira-lata. Ele quer esbaldar-se na chuva, revirar latas de lixo, correr à toa, dormir quando seus músculos cansarem.

Imaginem que esse cão tem a imaginação de um precaucionista. Qual é a reação do nosso cachorro? Primeiramente ele roerá a corda até libertar-se. Mas que sem graça seria se ele não enganasse seu destino, seu determinismo, seu tédio! Que graça teria essa solução? Após roer a corda, nosso herói continua seguindo o carro, livre, gracioso, até sorriria se a cães fosse dado o dom do sorrir. Por dentro, apenas contentamento. Há maior diversão para um vira-lata do que correr atrás da roda de um carro? O precaucionista, ao contrário do dogmático estóico, é adepto do relativismo conceitual.

Imaginem-se este cão. Vocês podem até imaginar o mesmo carro. Ou outro maior, mais bonito. Podem escolher. Quando se cançam de um, correm para o outro. Podem deitar, coçar as pulgas e dormir. Acredita na possibilidade tanto de se descrever um estado de coisas de várias modos, utilizando diversas linguagens, como de se descrever várias situações de um único modo, com uma única linguagem. Além disso, ele sabe que pode simplesmente criar uma linguagem para um único estado de coisas, fixar um ao outro, como um cão num carro, como uma vida num destino qualquer. Pode também romper a corda a qualquer momento. A qualquer momento, pode se calar. Ou latir quando necessário.

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