28 outubro 2006

primeira estorieta número 2 da Medicina paradoxal

Eu nunca soube voar. Por isso eu andava. Perambulava pelo bairro com meus pequenos frascos mágicos. Às vezes corria e saltava - quase, por pouco meus impulsos faziam-me voar. Mas não. O mais pesado que o ar: desabava. Mesmo que erguesse e movimentasse os braços aflitos feito passarinho. Mesmo fechando os olhos com força e sentindo o vento levantar-me em semi-vôo.

Vó Eloah incitava-me o lúdico. Lucidez. Seu quarto era um vendaval de mágica. Tinha medo às vezes. Evitava adentrá-lo à noite, depois das 7. Só se convidado. Ela abria vagarosamente a porta. "Bruxa do 71" - eu pensava.

E no ranger do tempo:

- "Venha cá, menino. Quero lhe mostrar algo" - E eu ia pé-ante-pé. Na ponta. - "Vou lhe contar alguns segredos" - Ela abriu um armário velho, no alto. Eu me apoiava numa cadeirinha recostada à porta. Quase não luzia - o bastante para refletir as cores vivas dentro dos frascos. Amarelo, mangeta, anil. A maioria parecia vazia, porém. Todas as cores do arco-íris e mais. Muitas. Ilimitadas.

- "Não, este não. Este, este e mais este. Sinta!" Abria frasco por frasco. O aroma infestava o quarto, meu corpo. Sentia cada sensação. Os odores não se misturavam. O lado direito do meu corpo embriagava-se de alegria, meus pés contraiam-se de furor, debatendo-se no chão sem que eu ordenasse. Minhas mãos encolheriam de medo. Logo meu corpo paralizava. Torpor. Como veneno de cascavél. Confusão de sentimentos, como se a máquina-corpo efetuasse uma operação ilegal.

- "O que é isso?"

- "São minhas emoções. Ora, menino, tenho idade o bastante para ter sentido tudo o que se pode sentir. Recolhi cada emoção e as meti em frascos. Estão todas aí, apertadas, concentrados dos mais puros sentimentos. Veja este: feito de lágrimas de alegria misturado com maresia. Foi quando conheci seu avô, na praia. Apaixonei-me de supetão. Acho que foi em 1940... 41. Bom, não importa. Desde muito venho recolhendo cada emoção. E na mistura desses ingredientes finos está o segredo de meus remédios. Sabe como se fazem os perfumes?"

- "Acho que misturam uns troços, uns trecos ou uns trens."

- "hm. Quase isso."

Eu saía à rua com aqueles antídotos, saía a vender sentimentos. As pessoas sempre a querer mais e mais. Perguntavam-me sempre do frasco nº 23, o da paixão fulminante. Mas não podiam comprar-mos, pois eu era quem os vendia. Assim, ou eu os vendia ou eles me compravam, já que se tratava do mesmo objeto. Vendia-os só quando necessário, e à pessoa certa, obviamente. Cada dia minha avó apresentava-me uma novidade.

Não me esquece um fraco azul, diminuto, mas de efeitos surpreendentes, como tudo o que saía daquelas prateleiras velhas, carcumidas. Uma pitada sob o céu da boca era o suficiente para fazer da pessoa alguém em especial no mundo - tornava-a a única pessoa a ser quem é. Eu mesmo o experimentara. Supinpa! Sentia-me original, eu mesmo, e mesmo hoje, só de lembrá-lo, tal sentimento retorna-me em parafusos. Vulcão. Redemunho. Este eu vendia por três obrigados e um aperto de mão.

Havia outro um pouco mais caro. Burrifava-se no pulso - então os batimentos aceleravam à espera do derradeiro sentimento. Alegravam-se repentinamente por um ou dois minutos. Tanto, mas tanto, que qualquer piada (até aquelas sem graça) que se lhes contasse resultaria em grandes e impiedosas gargalhadas.

Tudo era científico. Vovó merecia um Nobel. A mais alta medicina circunscrita em algumas prateleiras, dentro de uns míseros frascos antigos, espremendo os mais variados compostos que uma mente humana poderia imaginar.

- "Vovó, acho que esse remédio para curar tudo , feito à base de hipoglos, mertiolate, sonrisal e limão, está com defeito. Hoje tentei vendê-lo à preço de banana (custava de fato 3 bananas) a uma moça que se queixava de sentir nada. E depois de tomá-lo continuou a nada sentir."

- "Pelo menos ela se curou.”- respondeu-me vovó – “Não sente nada agora. Além do mais, esse remédio promete curar tudo, não nada."

Pedi a ela certa vez para compor algo que me possibilitasse voar.

- "Mas você não tem asas!" - respondeu-me.

- "Posso roubá-las de um passarinho."

- "Você é grande demais para isso, embora seja pequeno demais para outras coisas... deixe-me pensar... só se roubá-las de um passarinhoão."

- E por onde voam esses passarinhoãos?"

- No céu, ora. Mas tão alto, tão alto, que descansam por lá mesmo. Sobre as nuvens. Acho que nesse caso seria dificil alcançá-los...

E eu quase desistira quando ela mandou-me esperar uns minutos. Estava trabalhando em algo novo. O último trabalho de uma velha médica (ou mágica, não me recordo ao certo): o frasco das possibilidades impossíveis. Compunha-se de lembranças e esquecimentos. Tudo mesclado em porções porcionadas, em proporções proporcionais. Precisamente, com auxílio de balança e microscópio (que servia, segundo vó Eloah, "para ver as coisas que nós não vemos"). Fazia tudo isso no escuro; o que garantia a eficácia de seu método.

- "Com isso você poderá voar, se não tiver medo... Você tem medo?"

- "Acho que não... Quase nada é possível."

- "Nem tudo é possível" - vovó respondeu. Nunca acreditei, pois sempre houve mais coisas impossíveis do que possíveis. Quase nada se pode. Não se pode fazer nada diferente do que se fez, do que se fará. E isso pelo menos empata o número de coisas possíveis e impossíveis.

- "Você pode imaginá-las todas, seu bobo" - tentava consolar-me.

- "Pois então eu duvido que pense em algo que não seja nem possível nem impossível" - eu disse quase que triunfante.

- "Pois eu consigo, mas não posso te dizer o que é, já que o que é possível e impossível varia de pessoa pra pessoa. Eu, por exemplo, não posso correr feito louca por ai como você. E você não pode ouvir conversa de gente adulta feito eu. Por isso, temo que esse antídoto funcione apenas para mim. Mas você pode fazer o seu, basta que pense bastante e consiga imaginar tal coisa. Depois, prenda-o num frasco qualquer e deixe-o descansar até que ele se canse e aceite sua condição de remédio. Aí é só tomá-lo novamente, e realizar tal impossibilidade possível, ou possibilidade impossível – o que dá no mesmo."

E caminhava pela rua buscando tal pensamento. Raspava no conseguir, pois o pensamento me fugia repentino. Sentia-lhe na ponta dos dedos, na ponta dos cabelos (que é por onde os pensamentos nos fogem). Na ponta da língua, pois não saberia dizê-los com palavras. Talvez o que me faltasse fossem as palavras certas. Minha vó decerto as conhecia aos montes. Lia sempre a Bíblia, que, pelo que diziam, está escrito com todas as palavras; a Palavra.

E a correr atrás de um pensamento que não fosse possível nem impossível, como se bailasse, a perambular, percorria ruas e pessoas, sonhos e realidades. Sei que minha vó não me mentiria à toa. Talvez ela acreditasse mesmo em tudo isso, em voar, em suas poções de impossibilidades. Talvez sequer tenha pensado sobre o problema filosófico das possibilidades. O certo é que pensara demais. Lembro-me de sua voz grave, abestalhada, dizendo "estou cansada". Ela gostaria de esquecer tudo. De tudo pra nada. Por nada. Esquecer para lembrar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Lindo, moço!

Já não há palavras para dizer do quanto aprecio sua escrita...

Você deve ter tomado alguma porção mágica-real de perfeição.

Um beijo grande,