09 maio 2006

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Daqui uma hora os médicos ainda tentariam (em vão) ressucitar José, o pai. Seu terceiro derrame ocorrera na Páscoa. O desfibrilador o salvaria. José quase não tem cabelos. Corcunda, a neta diz 'carcunda'. Nem mesmo saem pêlos de seu nariz. É velho direito. Canhoto. Não fuma ou bebe. Preferia fumar quando bebia, mas nunca fumava.

Hoje. Não tem tempo ou não gosta de pensar em futuro. "A indiferença ainda mata o pai" - diz a filha mais nova, e também a mais idiota. José nunca lhe disse, e talvez por isso fosse um bom pai, nunca lhe contou que a considerava a mais estúpida das quatro. Tinha um certo nojo, mas nunca a repelira voluntariamente. Talvez porque se sentisse culpado, fingia as maiores caricias, dedicava-lhe os afagos mais constantes, os louvores. Era domingo. Fazia escuro. Os netos, tinha já um bisneto que levava seu nome, noras, genros, agregados, tios, o truco: reunião de família. Todos em volta de Seu José. Todos os fins de semana ele compra um caça-palavras com cruzadinha (nível Cobrão).

"Estado que se caracteriza por turgência vascular e excesso de sangue (med)".

- Tesão?... não, sete letras, hmmm... pletora! "Conectar em, alocar" - seis letras, horizontal, termina em R. Ar, er ou ir - José pensa alto.

"O quê?" espanta-se a filha. "Ar, ar".

Ele começa a escrever P, em seguida arma o L. Ela deixa pra lá. O velho tá ficando gagá. Essa menina me enche! Maldita aquela trepada, devia tê-la gozado fora. Escreve "PLUG", e seu rosto esbranquece, pálido, o braço formiga, a mão adormece. Solta a caneta e o último fôlego. O ar cada vez mais ralo, custa a respirar. Tenta gritar o socorro ou o último palavrão. Nas semanas seguintes o homem da banca terá um prejuízo de R$ 1,85 (hum real e oitenta e cinco centavos).