A insônia obrigava-o a leitura de Kafka. Deitava-se, deixava o livro sobre seu joelho, doravante de pé, tal um colosso que cedo madruga. As cotovias dormiam ou não havia cotovias. Não haveria cotovias por ali, mas em algum lugar elas dormiam. Esperam o inverno e migram para o sul. Insône o leitor nada mais esperava. Lia em linhas turvas suas entrelinhas, julgava-se incapaz de prosseguir a leitura. Pensava o despensado, esquecia que seus olhos persistiam no livro e o liam por si próprios.
Alguém bate na porta. O celular apita o despertador. Sua cabeça gira como se uma ressaca esplendorosa lhe acometesse. Chamam-no, gritam-no de lá. Ele esquecera como se pronuncia palavra ou ficara com tanto medo de não conseguir que simplesmente a evitou.
“Is there anybody in there?... Ope… th… fuc… doo...!”
Alguém bate na porta. Não são apenas murros, as palavras parecem bater e se esquivar por debaixo, tornando o som quase imperceptível, quase impronunciável, quase irreconhecível. Talvez sequer fosse voz humana ou de cotovia.
Era manhã. O celular apita a soneca do despertador. 7:15 (sete horas e quinze minutos). Não conseguiria sair da cama sozinho. Teve várias idéias entrelaçadas, entre as quais cessar totalmente a respiração e respirar tanto ar quanto lhe fosse possível. Não optou por nada. Decidiu deixar-se. Fechou novamente os olhos e quis crer que tudo não passara de um sonho. Ainda havia algo do lado de fora. Certamente não era cotovia.
7:30 (sete horas e trinta minutos ou sete e meia). A porta persiste. O celular apita o despertador. A preguiça transforma-se em curiosidade. Não há chave. Não há nada que aplaque sua curiosidade. A curiosidade transforma-se em ansiedade, a ansiedade logo se torna angústia, e a angústia acabaria por lhe matar.
Percebera só, e como se tivessem passado dias, meses, anos ou um tempo indeterminado trancafiado naquele quarto quase vazio ou inóspito, sentia-se uma cotovia que nunca viera a existir, porque ninguém nunca a viu, porque naquele espaço miúdo e ofegante nenhuma cotovia sobreviveria. Talvez fosse mesmo uma cotovia, mas isso só em possibilidade, uma vez que não havia espelho que lhe revelasse sua forma. Esquecera de si. O celular desligou-se sem bateria e a porta não era mais porta do que parede.
Um comentário:
Seus textos são de uma inteligência surpreendente!
=***
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