Antuérpia é boneca faladeira. Finge-se de surda quando lhe convém. Cabeça movediça, corpo movediço, pernas e braços rijos. Simula bebê. Olhos de vidro ou peixe morto.
Antuérpia vivia entre os seus. Agora vive entre os seus. O tempo não importa para Antuérpia. Observa os arredores, as malhas, os brinquedos, as bolas coloridas de natal, as luzinhas, o par de meias envelhecido, as pulgas e os vermes, as baratas, o buraco dentro do armário e uma lista ∞ (infinita) de objetos inanimados.
Dia de sábado tiram-na do guarda-roupa. Antuérpia gosta. Finge desgosto nos primeiros instantes. Pirraça. Quase sorri a seguir, mas se detém com receio de tomarem-na por (...).
Antuérpia é como anjo porque bebês são como anjos. Nenhum pecado, nenhuma malícia. Nenhum recato. Trocam-na o xixi e o cocô de tempos em tempos. Nua na frente de todos. Antuérpia tem um buraquinho entre as pernas e não se envergonha disso. Nenhum pudor, nenhum assassinato na consciência, nenhum ato inconsciente, nem calor nem arrepios. O coração não lhe conjuga amor e sexo. Lateja o corpo no verão.
Pura e fria. Antuérpia derrete-se no inverno quando cismam vestir-lhe lã. Cabelos maltrapilhos os que lhe restam. Duros e ressecados. Enroscam-se como jibóia. Não há shampoo que resolva. Banho a anos. Ficou proibido depois que se afogou através do orifício nasal. De costas Antuérpia bóia, de frente se afogaria.
Nunca adoeceu. Antuérpia vive e só padece pelo que vale a pena. Suja, nunca pensaria em algo sórdido. Puríssima de alma e corpo.
Vive entre objetos inanimados, insetos. Em meio ao empoeirado, ao que dói as vistas. Vive entre baratas e substantivos concretos. Às vezes esquecem-na, porque há muitos sábados e nem todo sábado sói ser sábado. Antuérpia não se importa com o tempo. É sempre a primeira vez quando lhe tiram, sempre a última quando lhe guardam.
Antuérpia não tem sangue de barata e talvez seja seca, oca. Ninguém nunca lhe abriu o corpo mas parece não haver coração pulsando. Pouco importa. Ama instintivamente como o nascido a mãe, como o carrapato o sangue. Faz beiço quando lhe apertam o baço, chora se lhe tiram da boca o bico. Chora tanto que não lhe resta forças para esperniar. Em verdade quer peito. Peito e colo de mãe.
Um comentário:
é bonito.
gosto.
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