06 janeiro 2007

5 reflexões sobre o feminino

1 - Viagem ao centro de si

Suspirava para dentro de si toda toda em rarefação, tornava-se leveira, raquítica, metamorfoseava-se em sonho; porque de olhos cerrados intensamente; oprimia seu peso então para a cavidade superior do tubo digestivo denominando-se boca seu estado natural. Vomitou-se formiga, dimórfica porque ainda fêmea. Suturou os lábios da quase boceta que lhe espirrara fora, coseu-os em costura hermética, em zigzag. Sem corpo não sentia a gravidade. Transcendia paredes e era como se pusesse abaixo, ia como se viesse, metia-se acrônica desimportando qualquer dualidade; nem razia nem gazua, nem amiga nem amante, tinha seis pernas caso tropeçasse. Não tinha nem mesmo pensamento, que pesam a mente. Sequer se poderia conceder-lhe uma; razão pela qual aceitava de bom grado o contragosto da sacarina. Açucareira preferia quebrar os blocos, as névoas; bem-fazeja preferia carregar de grão em grão, radiavasse ao desencontrar seus pares, roubava a fatura, cominando-o bucho abaixo. Alguns minutos apenas e a formiga enchia-se de si, anciava pela sesta, mais pesada do que o ar que lhe suportava; mas meridiana, tornava à vida.

2 - Viagem excêntrica

Despertou com cinzas na boca, cheirada a café e pão de queijo. Queimou a ponta do cigarro. Tragou-o automaticamente. Arraigou-se no profundo; tal uma âncora estribava-se oniricamente para dentro de seu corpo virgem e cru. A vida da moça, a vida da máquina. Fechou os olhos para a formiga que lhe bebericava o acúcar-cafeína no canto da boca. Fez-lhe cócegas e um voluptuoso movimento de língua foi o bastante para misturar à tudo isso sua saliva. O processo: em diástase, em ptialina, o amido em maltose e dextrose, a formiga-macha em coito melado. Engoliu então seu cuspo. Em seguida tornou ao fumo. Aspirava desmaiando a cabeça e fechando os olhos para o céu. Atéia desprezava o mundo, achava-o em si. Labiríntica esboçava um sorriso. Ninguém percebia o sentimento ingerido, degenerado em energia corpórea; ninguém percebia a objeção contra o primeiro princípio da termodinâmica. Sobretudo, todos a percebiam embora fossem meticulosamente ignorados - eu inclusive.

3 - Isso de delírios e verbos

Verborragia.

A vida da máquina por um fio. A vida da moça por um tubo.

Ela, franzina, cheia de vírgulas e curvas. Curva, assim como a vida e pontos finais. Um isto a mais e pronto. Outrora ousada. Mestre, talentosíssima, jovem, estilosa (na escrita e na lida obviamente). Hoje, aí, por aí adornos pelos cobertores, pelos calafrios, por suas constantes... as dores de cabeça, os vômitos sem substância, as infernais ânsias, o gosto amargo de éter, de enxofre.

E os DELÍRIOS.

Sem elucubrações muito metafísicas. Muito não. Nada de Tomás de Aquino. Nada de Jean-Paul Sartre. Nada de nada. Delírios quase humanos, quase comuns, quase com razão, mas desarrazoada a menina, ela, franzina, entre as vírgulas de sua imaginação fértil e a experiência imediata, divina, tal qual a trancendência, mas sem isso de grande metafísica; tal qual o amor, a sua pieguice, a preguiça do casal à luz do dia. As invejas brancas negras de inveja.

Delírios numa cama bem-posta, como um sonho sempre insensível e nunca abscôndido, toda a cama em sua arrumação costumeira, as enfermeiras sem trabalho em qualquer aí, ABSOLUTAMENTE.

Tudo, exceto os vômitos, as vazantes, os cobertores sujos; o corpo da menina quase não mais próprio a sua vontade – interna, vontade do fundo de si, pois por fora apenas angústia, nolição, ato desatado, um hirto teso, a verticalidade numa cama: sangue mas carne, ossos.

A vida da moça, a vida da máquina. Uma entubada à outra, ambas necessitadas de qualquer digestão, de qualquer respiração verdadeira. Todo o socorro possível, medicamentos, tratamentos, exames, receitas, lista de hospitais, pista de curandeiro, semente de Oxalá, oferenda pra Ogum, encruzilhadas, injeções, fé, muita fé de muitos, promessas, promessas que numa vida pouca e parca dificilmente. Embora nada disso... e nada de qualquer outra coisa, de qualquer possibilidade.

Seus últimos momentos, a morte ali por perto, o restante de si, que porcamente ser-ente est; tanto tempo nesse mundo, dessa gente sem valor, e tão menos que um ISSO pra guria curva e vírgula, a seguir, já-já, seu ponto final, o pôr e o nascer, ambos crepúsculos, ambos iguais. À ruina: o termo.

Ninguém em sã consciência – e mesmo alguém em contrário, contrariado com o rumo da própria vida, ainda assim a existência, isso da qualidade tocante a um simpes pôr de sol. Ao nascimento também, porque unicamente dos astros o movimento, dos seres este ser sacramental, o sacrilégio do ser, sua estaticidade essencial. Mas à grandiosidade destas manifestações, todas essas, do sol e dos seres, sucumbição, soçobração, tudo sem poréns. Seu olhar seu sempre novo a cada dia, quase anodinia, indiferente como o sol, olhar perdido na realidade louca, assim de olhos estufados, eles, dela, imensos, tãomente que as horas para a comoção pequenas, e não mais do que em repouso, virgem.

A vida. Ávida.

Exceto a poesia. A poesia de nós mesmos, e dela.. Por Carlos Drummond de Andrade: De qualquer tempo o tempo. A mesma hora da morte a hora do nascer. De nenhum tempo o tempo bastante para a ciência do reviver. Tempo contratempo, o mesmo em contrariedade, mas o sonho imensurável deste seu viver.

Morte, vida, veracidade e severinos. O rio debalde, e ondas do rio pro marzão, anônimas e seguidas elas, como o sol de todo dia, que de nome talvez menina, somente franzina e só, anônima como vírgula e Maria, ela, como as ondas no eletrocardiograma – as mesmas dessa nossa lida. Vida pequena, deveras, igual a si: Maria, um e cinquenta de pequeneza, hora do almoço, e que coicidência!, a injeção direto na veia, sem fome ou forças para.

Isso de delírios e verbos, de ideais e novas vidas, por conta a perpetuação humana, o concebimento de novos seres através da seleção natural. Mais que isso a própria natureza. Essência.

Nada de filhos, não por escolha própria, talvez em pensamento essa vontade ou em imaginação uma barriga cheia, repleta e empanturrada de vida. A mão cá na barriga e vislumbres, delirios novos frente ao espelho (mas qual espelho?). Sonho seu.

Não da maneira de Werther, de Hamlet, de Pátroclo. Ou mesmo como Severinos e Riobaldos, ela, Maria, de modos somente dela só. Ninguém por si, a solidão apenas, o solipcismo extremo.

A vida da máquina novamente por um fio. A vida da moça nem por um tubo.

A vida reta da moça, só com o desligar dos aparelhos, quando da falência múltipla dos órgãos, e o eletrocardiograma assim:

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4 - A velha, vermelha em gauche, partida ensangüentada e cadavérica no chão do Maletta.

De repente viu cair a moça sua mocidade. Cancerou, apodreceu.

Até que dela tive pena, perder assim-assim o frescor dos poucos anos; motivo nenhum exceto o medo do ridículo. Até compreendo o destino, que arma das suas. Ridícula. Riebeckita, dimorfo de pirolusita, veio sentar-se à mesa. Sem licenciamento. Biriteira, Maria Fernanda Almirante Neta, filha ilegítima de Juscelino, o Kubitschek. Caquética quase nada não podia, indesiciosa babejou um "quando nasci", repetiu "quando nasci...", trepetiu, e um anjo veio-lhe à boca dizendo: "Vá, gauche, ser Carlos na vida"... "Vá, disse-me; e fui!". "Foi?" - perguntaram-lhe. Corroborou com um gesto, mais não podia. Esquecera ou desconhecia. "Vá, Carlos..." - ria-se, ela dela. Aí rimos eu, o Stener, o Guilherme e o Antônio, mas este só de regalo. A minoria mostrava acanhamento. "Vá, Carlos, um anjo dess... torr... que vi, vá, me disse; e não é que eu vim!?" - gargalhou. Choramos eu e o Stener, de rir. O Guilherme forçou riso e o Antônio não achou graça dessa vez. Os outros sorriram, mas de pena. "Um anjo torto" – eu disse. Todos olharam, inclusive ela. Satisfez-se. Continuei: "desses que vivem na sombra, disse: Vá, Carlos! Ser gauche na vida." Era desgraçada, ela. Riu de mim, que ria dela. Ria-se em si, por si, de si. Era a graça a desgraçada.

Pediu copo; apreciava álcool. "Tá com cú chêi e vaintorná" - pensei alto. Caíra-lhe a mocidade; tinha razão. Tomou a primeira, foi ficando sem fala. Só tinha o "Vá, Carlos", que eu fizera-nos o favor de roubar-lhe. Perguntou se tinha de pagar, e levantou reconhecendo amizade antiga. Foi-se; deixou-nos a certeza do nunca mais. Estrabulérica.

De repente rebentou-se; não de nascença. Em escorregão deu de nuca na quina da cadeira. Sustive-me, paralisei o riso. Minto. Ria-me, entre contentamento e descuido, mas só por dentro. Aí minha consciência pesou e mandou-me calar. "Melhor tivesse ido", respondi, "tivesse carloosido".


5 – Ménage

Ela - a outra - era linda, lindíssima por redundância e superlatividade. Era linda, mas linda por confronto; porque a outra, horrenda, engrengava-se-lhe à saia, pequenina, feita cruela, ignóbia, dó não tinha dos olhos de quem a visava e sequer inspirava graça. Ardia, não se podia denominar cômico o seu andar preguiçoso, ignívoro, ignorante. Cuspia brasas tal varana, derrapava-se escorregadia, pirama, piracanjuva caraciforme, deformada. Vinha sem trejeito, a judiar. Cena trágica embora não mancasse um centímetro. Andava feito bizonha cabisbaixa, ostentava baixez, pensando em si como escultura sem braço a sustentar o corpo, desperneando ao suplício de quem vê, será que não pensa em quem a vê? Será que vil não possui espelho em casa? Pensava em si como escultura em farrapos, feita às pressas e dada às traças. Sentia-se bruta. Sentia-se apenas busto de Diotima de Matinéia, matutina não era mulher - nem poderia ser. Vespertina só se comparava com o belo ou algo diverso de si. Faltava-lhe o filo da razão. Era o caniço despensante, que pensava em si sem espelho ter em casa; furúnculo subcutâneo que exibia apenas sua reveste, sua derme e epiderme; verme, conquistava espaço apenas entre os parasitas, apenas entre os não-vivos, os que não necessitam ar puro. Situava-se enmucosas pleuras, submersa ou flutuante, qualquer parte de seu corpo vertia asco e repugnância. Era sem estética. Daninha. Harpia. Chamava-se Roberta, embora significasse a feiúra do inominável.

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